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21 de mar. de 2008

Absurda inversão de valores

Reforma penal e tolerância zero
ROBERTO DELMANTO JUNIORO
O furto de um CD player de um carro, quebrando-se o vidro, tem a mesma pena mínima do peculato, que é assalto aos cofres públicos
HÁ ANOS, em Nova York, implementou-se o programa "Tolerância Zero". Defende-se rigor com a pequena delinqüência visando obter a redução dos crimes violentos. No Brasil, há quem defenda a "tolerância menor do que zero", como certo governador (Folha, 8/2). Ele não está sozinho. Muitos juízes, com apoio de parte do Ministério Público, vêm inflando as cadeias (já superlotadas) ao resistir às penas alternativas, ao manter prisões em flagrante por furto de coisas insignificantes e ao decretar prisões provisórias de acusados que, se condenados, terão direito a pena alternativa ou em regime aberto. O resultado está na mídia.
Em Minas Gerais e São Paulo, são antigas as denúncias de cadeias que lembram o Holocausto. No Pará, o horror da adolescente presa com homens por tentativa de furto, estuprada por dias. Em Santa Catarina, uma adolescente e uma mulher ficam por dias acorrentadas a postes de delegacia. Em Maceió, acusado de furto de um queijo passa meses em cela desumana; outro, acorrentado (Folha, 24/2 e 10/2 deste ano, 25/11, 5/12 e 29/12/ 2007). A maioria dos presos submetidos a essa situação é de acusados por crimes contra a propriedade privada, ainda que praticados sem violência. Outra, de "mulas" do tráfico, sendo raros os grandes traficantes presos. Há outras formas de violência, contudo, que causam males mais graves à sociedade, as quais não são alcançadas pelo nosso sistema repressivo ou, quando o são, encontram indisfarçável benevolência.
Onde estão os arautos do discurso punitivo ao lembrarmos da violência da nossa desigualdade social? Da violência da total falta de perspectiva para jovens que estão a pedir esmolas? Da violência das filas na saúde pública e dos governos que não priorizam transformar favelas sem esgoto em bairros dignos? Da violência de gastar milhões para enviar um brasileiro ao espaço em vez de investir em educação? Da violência do desvio de dinheiro público em obras superfaturadas, sendo, por vezes, até reeleitos os políticos acusados da falcatrua?
Se o direito penal é um instrumento excepcional de proteção de bens como vida digna e liberdade para que todos possam encontrar condições igualitárias de desenvolvimento, não se pode conceber um sistema penal que priorize a proteção da propriedade privada, servindo à manutenção de um status quo altamente doentio não só em termos de desigualdade social, mas também de desigualdade punitiva.
Tamanha é a proteção da propriedade privada em nosso Código Penal que a pena mínima do roubo com arma de brinquedo é igual à do homicídio privilegiado, e a do furto, a mesma da lesão corporal grave. E mais, o furto de um CD player de um carro, quebrando-se o vidro, tem a mesma pena mínima do crime de peculato, que é assalto aos cofres públicos!
Afora essa absurda inversão de valores e o nosso vergonhoso sistema carcerário, o sistema penal enfrenta outros problemas que também clamam por reformas. Lembramos apenas quatro. O primeiro que a todos perturba é o da morosidade da Justiça, sendo grave o equívoco de um projeto do Senado que propõe acabar com a prescrição, em vez de enfrentar a lentidão. Se a Justiça já é lerda, será pior se não houver prescrição. Igualmente, o foro privilegiado para deputados estaduais, federais e senadores, além de prefeitos, governadores, ministros etc., que gera gritante impunidade. Afinal, todos deveriam ser iguais perante a lei. Envergonha o Brasil, também, a tortura e o abuso de prisões temporárias para obter confissões.
Quando um juiz admite a utilização de uma confissão policial para condenar, "desde que corroborada por outras provas", estimula-se, indiretamente, a busca pela confissão a qualquer custo. Puro resquício ditatorial. A pouca proteção a testemunhas é também fator que gera enorme entrave à busca da verdade. A mais urgente reforma, contudo, é a da mentalidade das autoridades, a fim de que se evite essa irracional "tolerância menor do que zero" para crimes menos graves, acompanhada de hipócrita benevolência com outras formas de violência que geram males muito maiores à sociedade.
Vivenciamos o absurdo. De um lado, as desumanas prisões tornando as pessoas piores, presas do crime organizado; de outro, a impunidade dos que desviam recursos públicos, que gera mais desigualdade social, mais injustiça, mais violência. Chegamos à triste constatação de que o atual sistema punitivo, em vez de combater o crime, está gerando mais criminalidade. O pior é acreditar no sistema sem enxergar o óbvio: estamos enxugando gelo.

ROBERTO DELMANTO JUNIOR, 39, mestre e doutor em direito pela USP, é advogado criminalista. É co-autor do livro "Código Penal Comentado", entre outras obras.
Fonte: Folha de São Paulo - 19 de março de 2008 - Caderno Opinião

Um comentário:

  1. Anônimo22/3/08

    Desde que li a condenação de Maria da Glória Costa Reis, tenho escrito mentalmente algo para se publicar. Dezenas de tentativas frustradas: minha indignação é maior do que as palavras!!!!
    O que dizer?? Defender Glória, jamais!! Não é objeto de defesa alguém que é a personificação da bondade, da dignidade, da honestidade, e, sobretudo, da solidariedade...
    Glória, ao denunciar a violação dos direitos fundamentais dos detentos, cumpria seu papel de cidadã em defesa da CONSTITUIÇÃO
    Apavora-me viver num país em que a defesa da Constituição constitui crime...
    Enoja-me viver num país cuja Justiça, muitas vezes, está à mercê de pessoas que se sentem tão superiores aos demais cidadãos, pessoas extremamente vaidosas, que não admitem críticas.
    Ao invés de se sentirem melindrados ou ofendidos, deveriam os responsáveis pela ação e condenação de Glória fazer uma visita à cadeia de Leopoldina para ver se a intenção dela foi difamar o Sr. Juiz ou colaborar com ele para que, avisado, pudesse intervir de forma eficaz no funcionamento da cadeia e exercer , assim, seu papel, enquanto juízes da Vara Criminal e de Execução Penal
    Por tudo que temos vivenciado neste país “ quem NÂO deve , tem que temer”
    Maria da Glória, pode crer que 99% da população brasileira pede desculpas a você pela grande falha de uma de nossas INSTITUIÇÕES... e parodiando Cristo " Perdão, senhora, eles não sabem o que fazem"

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