Internauta relata dez minutos no inferno
O relato abaixo mostra a que moradores de áreas mais pobres estão expostos, sem condições até mesmo de prestar queixa desses maus policiais:
“Meu Deus, por que fizeram isso comigo? É porque sou negra, por quê?” Nada justifica, eles não tinham um porquê, mas quem disse que eles precisam de um porquê? A polícia do estado faz o que quer, age com as pessoas como quer e nós, cidadãos, que pagamos seus salários vivemos acuados, à mercê deles.
"Venho por meio desta expressar minha indignação, minha revolta, minha repulsa e todo o ódio que sinto neste momento direcionados à polícia do Rio de Janeiro.
Eu tenho 30 anos, 29 destes morando na comunidade do Jacarezinho, de onde sempre tive vontade de sair e minha mãe, não. Minha mãe morreu em 28 de dezembro de 2006, vítima de um enfarto, ocasionado por um susto. Ela ia trabalhar em seu bar, na Praça da Concórdia, quando uma granada foi acionada (segundo as pessoas que a socorreram, pela polícia) próximo ao local em que ela estava passando. Quase que não conseguem levá-la ao hospital porque a polícia não permitia que carros saíssem do local, um rapaz colocou minha mãe dentro de uma Kombi e levou-a “na marra”. Infelizmente não adiantou. Em meu trabalho, meu telefone tocou. Quando vi o número de minha mãe atendi rápido e uma mulher me disse o que tinha acontecido. Liguei para minha irmã e corri para o hospital. Chegando lá já encontrei minha mãe morta. No mesmo dia saí daquele lugar. Fiquei duas semanas morando com minha irmã, e depois alugamos uma casa em que moro com minha avó, que no momento está internada.
Infelizmente a casa da favela, por estar em péssimas condições virou um elefante branco que não conseguimos vender. Além disso, na casa estão duas cachorras que não tive como levar comigo (a casa que moro atualmente não tem quintal) e não tive coragem de largar na SUIPA. Semanalmente vou até lá, alimento (deixo comida para uma semana), troco a água, lavo o quintal e vou embora. Ontem ao concluir esta rotina, fui embora com a intenção de passar no hospital para visitar minha avó, e depois ir para casa.
Tenho muito medo de andar de ônibus, devido ao enorme número de assaltos, portanto, peguei uma Kombi em direção à Penha. Esta Kombi faz o itinerário Jacaré-Caxias.
Quando chegou na Avenida dos Democráticos, na altura do Abrigo Cristo Redemptor, três policiais pararam a Kombi, e juntamente com um casal que estava na mesma me obrigaram a descer. Fizeram-me pagar a passagem e mandaram a Kombi embora. A partir dali foram dez minutos de inferno, vocês que estão lendo podem achar pouco, mas, para mim foi uma vida inteira.
Os policiais usavam sobre a farda coletes à prova de balas que impedia a leitura de suas identificações, eram dois brancos magros e um moreno gordo, o qual um dos outros dois identificou como sargento. O tempo todo eles diziam que eu estava com drogas, que eu era viciada e que eu tinha que entregar logo. Como é que a gente pode entregar algo que não tem? Eu tentava dizer isso à eles, mas ninguém estava interessado em me ouvir. Mal olharam minha identidade, diziam que eu estava mentindo, que eu tinha que “desenrolar” com eles, ou me levariam para a delegacia. Eu disse que ficassem à vontade para fazê-lo, já que não sou usuária de drogas e que nada possuía. Me ofereci para esvaziar minha bolsa na calçada, e um deles disse que eu carregava drogas dentro da calcinha.
Eu disse que ficava nua no meio da rua para que eles vissem que não tinha nada. Este que falava comigo me proibiu de fazê-lo e disse que o sargento era um animal e que ia me arrebentar se eu não entregasse logo, queriam que eu dissesse que estava junto com o casal que eles também retiraram da Kombi. Disse que eles já haviam entregado o flagrante e que faltava eu.
Mais uma vez argumentei que nada havia comigo, que eu não conhecia o casal e que eu não tinha o que entregar. O tal sargento (o moreno gordo) veio na minha direção e aos berros falou que ia me “pranchar”, e eu ia ficar com a cara mais larga do que já era, ele disse: “Eu vou te estourar toda, vou te partir no meio, entrega logo essa porra ou eu vou começar a te bater.”, eu a esta altura já estava chorando e me tremia toda, comecei a abrir a roupa para ficar nua na rua. Ele disse que se eu tirasse a roupa ia me arrebentar, que ninguém na rua ia fazer nada, que já estavam acostumados com isso. Mais de uma vez pedi para ligar para minha irmã. Este gordo tomou meu telefone celular e disse que iria quebrá-lo, que eu não ligaria para ninguém.
Já muito nervosa e apavorada, em um momento que me deixaram sozinha para falar com outros policiais que passaram em uma viatura (estes ao ver a cena ficaram rindo com deboche), eu disse “Meu Deus me tira daqui, em nome de Jesus”, eu já pensava em me atirar na frente dos carros que passavam na rua, nunca senti tanto medo em minha vida, e apesar de saber o que a polícia costuma fazer (eu morei como já disse antes, 29 anos em uma favela e sei do que eles são capazes), nunca pensei que fosse acontecer comigo.
Eu trabalho, faço faculdade, nunca usei drogas em minha vida, e não acreditava que estava passando por tudo aquilo. Por fim o PM que dissera que o sargento era um animal pegou meu telefone com ele, me devolveu, parou um ônibus que ia em direção à Penha e me pôs dentro dele, disse ao motorista que me levasse sem pagar a passagem, pois haviam me tirado de dentro de outra condução para uma revista, e me orientou a não ligar para ninguém.
Assim que o ônibus começou a andar, eu liguei para minha irmã e disse o que tinha acontecido e pedi que ela fosse me buscar em qualquer lugar. Desci no c entro da Penha, onde minha irmã já me esperava junto com meu cunhado. Ligamos para minha prima que é advogada, que disse para irmos até a 21ª DP (delegacia próxima ao local em que os policiais estavam), ligamos para meu primo que é da polícia e ele disse que deveríamos ir prestar queixa no 22º BPM, na Maré. Que se fôssemos à delegacia não adiantaria nada. Fomos até o batalhão que se localiza na Linha Vermelha.
Três policiais nos recepcionaram (em nenhum momento nos incentivaram a entrar)e ao ouvir me relato um deles disse que isto não era atitude de um policial (mas, foi só), e um outro falou que eles não eram daquele batalhão, apesar de estarem na área coberta pelo 22º BPM, eles eram “pitou” (não sei se é assim que se escreve) [Patrulhamento Transportado em Ônibus Urbano], que eles eram da cidade e trabalhavam em ônibus fazendo revista, que eles tinha jurisdição na cidade inteira e que ali nada podia ser feito. Disse que nós devíamos ir até a 21ª DP e prestar queixa lá.
Por fim desistimos, e fomos para casa, pois já havia passado uma hora do fato ocorrido, ficamos com medo de nos expor demais (todo mundo lê nos jornais o que acontece com quem denuncia policiais), além disso, deduzimos que eles seriam devidamente avisados para saírem do local. Tudo aconteceu entre 15:30 e 16:30. Agora são 05:27 da manhã, estou na casa da minha irmã, estou acordada desde 4 horas, o pouco que dormi tive pesadelos.
Estou com medo de voltar para minha casa, pois falei onde morava, e no momento estou morando sozinha já que minha avó está internada. Estou pensando como vou ter coragem de ir à faculdade na segunda-feira e voltar tarde da noite.
Estou simplesmente apavorada. Meus olhos estão quase fechados de tanto chorar, e a todo o tempo só fico perguntando “meu Deus, porque fizeram isso comigo? É porque sou negra, por quê?” Nada justifica, eles não tinham um por que, mas quem disse que eles precisam de um por quê? A polícia do estado faz o que quer, age com as pessoas como quer e nós, cidadãos, que pagamos seus salários vivemos acuados, à mercê deles.
Eu vou pegar minhas cachorras e levar para qualquer lugar, vou abandonar o único bem que eu tenho que é aquela casa (estou morando de aluguel fora da favela, precisava vender a casa para dar entrada em alguma coisa para mim) e não volto àquele lugar nunca mais, não quero nunca mais em minha vida passar pela Avenida dos Democráticos.
E gostaria de nunca mais na minha vida ter que ver um policial em minha frente, pois, a cada vez que eu vir uma farda azul marinho, só sentirei o que sinto agora: medo, revolta, nojo, desprezo, desespero e muito ódio. Um ódio tão intenso que parece sólido, e que me faz ter medo de meus pensamentos e meus desejos. Nem implorando a Deus eu consigo me livrar disto.
E agora quero saber, quem é que responde por isso? Quem garante meus direitos de cidadã? Quem me protege da polícia? O Que eu devo fazer quando encontrar um policial, correr? Onde está o governo do estado? Quem é autoridade para impedir que passemos por isso? Quem pode fazer alguma coisa? Como ousam dizer que vivemos em uma democracia se não temos direito de ir e vir? Eu fui constrangida, eu fui ofendida, verbalmente e quase fisicamente agredida, e quem é que responde por isso? Que polícia nojenta é essa que nós temos?
Outro dia eu queria atravessar uma passarela próxima ao local em que estudo, e fiquei com medo porque tinha um vulto escuro lá em cima. Quando vi duas mulheres subindo resolvi ir junto. Um rapaz descia e percebendo nosso receio informou que era um policial. A mulher que subia (já uma senhora), junto com uma menina que era aparentemente sua filha disse: “Não sei agora fico tranqüila ou com mais medo do que já estava”.
Hoje eu compreendo ao pé da letra, o que ela disse. Se eu passar em uma rua escura, tenho medo de encontrar policiais, e só fico pensando se estes caras têm família. Se têm filhos e filhas, e o que dizem à eles quando saem de casa e quando voltam. Que cumpriram seu dever? Devo dar risadas com relação ao que eles chamam de dever? Eu, como cidadã, pago seus salários para ser agredida? Sinceramente, dever cumpro eu, que de dois em dois anos trabalho de graça um domingo inteiro para a justiça eleitoral.
EU TENHO MEDO DA POLÍCIA, EU DESPREZO A IMPUNIDADES DELES E A AUTORIDADE QUE ELES TÊM DE FAZER MAL AOS OUTROS, EU DESPREZO O FATO DE DESONRAREM A FARDA QUE VESTEM. A QUEM ELES PROTEGEM? QUEM NOS PROTEGE DELES?
Não vou me identificar por medo de represálias, mas envio este relato à todas as autoridades que conheço, assim como a todos os jornais. E farei isto todos os dias até ser ouvida."