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25 de jul. de 2008

O Estado assassino

Publicado no
Editorial
O remédio da política de segurança do estado do Rio de Janeiro amargou

No dia 29 de junho, o jornal O Globo publicou uma pequena notícia sobre um protesto na Avenida Brasil. O leitor desatento seguramente não deu importância à foto que mostrava pessoas sem camisa no meio da pista. Eram moradores da favela do Muquiço, em Guadalupe, subúrbio do Rio de Janeiro, onde, um dia antes, Ramon Fernandes da Silva, de apenas 6 anos, havia sido morto em ação policial.
Em outubro de 2007, na favela da Coréia, Zona Oeste da cidade, morreu, em circunstâncias parecidas, Jorge Kauã Silva de Lacerda, de apenas 4 anos, a idade que o menino João Roberto, morto por policiais no dia 6 de julho, completaria no fim deste mês. As três crianças, Ramon, Jorge Kauã e João Roberto, são vítimas da política de extermínio do governo do estado, que estimula a violência policial como critério de eficiência.
A diferença está na natureza das ações policiais que as vitimaram. O bárbaro assassinato de João Roberto não aconteceu durante incursão a uma favela. Atingiu uma família de classe média confundida com “supostos criminosos”, na Tijuca. O caso provocou grande indignação, foi capa de todos os jornais cariocas e reabriu o debate sobre violência policial. Numa tentativa de individualizar o acontecimento, o governador chamou os policiais envolvidos de “débeis mentais”; por sua vez, o Secretário de Segurança cunhou uma expressão - “ação desastrosa” – que se tornou recorrente nos meios de comunicação. Em toda a imprensa, ecoaram denúncias do “despreparo” e da “falta de treinamento” das polícias.
A inépcia da polícia é, sem dúvida, um dos fatores que possibilitam crimes de tal espécie. No entanto, pouco se falou sobre o que, de fato, a morte de João Roberto reflete: a orientação explícita aos policiais de confrontar o crime a bala, “custe o que custar”. Uma parcela da classe média que apóia este método - e que aplaudia as dezenas de mortes na grande operação policial no Complexo do Alemão, há um ano – foi obrigada a conviver com um dos piores efeitos colaterais da política de Cabral Filho e Beltrame.
Somente no último mês, outras três “ações desastrosas” evidenciaram, no “asfalto”, o belicismo policial que as comunidades pobres do Rio de Janeiro já conheciam. A morte de um jovem na saída de uma casa noturna de Ipanema, atingido por tiro disparado por um policial que fazia a segurança do filho de uma promotora de Justiça, as suspeitas de que policiais militares podem estar por trás do desaparecimento de uma engenheira de 24 anos, na Barra da Tijuca, e as imagens de um policial arrastando o corpo de um administrador morto “por engano” na Avenida Brasil serviram para reforçar as evidências de que não se trata apenas de despreparo, mas de uma ação beligerante e homicida que orienta todo o modo operacional da polícia fluminense.
Essa forma de atuação não se restringe ao horário de trabalho, uma vez que muitos agentes do Estado a levam consigo nas horas de folga. A formação de milícias - quase sempre amparadas por um falacioso discurso de “justiça” e “ordem” - e de grupos de segurança ilegais são reflexos diretos dessa orientação.
Enquanto as execuções estão restritas aos territórios das favelas, o “remédio amargo”, como definiu o Secretário de Segurança durante a operação no Alemão, é facilmente tragado pela imprensa e pelas classes dominantes. A distância geográfica e social que nos separa dos acontecimentos permite um julgamento frio e, por vezes, cruel. Se tivesse o dobro de sua idade, Ramon Fernandes da Silva, o menino de 6 anos do Muquiço, talvez fosse até taxado de traficante.
A morte de João Roberto pode ser o princípio de um processo de revisão, por parte da sociedade, da política de segurança que, somente no estado do Rio, matou 1330 pessoas no ano de 2007. Em artigo publicado na Folha de S. Paulo, a respeito da morte bárbara de três jovens da Providência, entregues à quadrilha da favela da Mineira por integrantes do Exército, em junho passado, a psicanalista Maria Rita Kehl ressaltou a importância desta revisão, argumentando que “não haverá solução enquanto a outra parte da sociedade, a chamada zona sul - do Rio, de São Paulo, de Brasília e do resto do país -, não se posicionar radicalmente contra essa espécie de política de extermínio não oficial, mas consentida, a que assistimos incrédulos, dos negros pobres do Rio”.
Talvez seja compreensível que a revolta do cidadão comum diante da violência lhe desperte sentimentos de vingança e impiedade. É inadmissível, no entanto, que o Poder Público se valha de tais instintos. O Estado não pode ser, nunca, assassino.

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