Leiam artigo muito previdente, além de interessante e bem-humorado. Alerta-nos para o perigo das más companhias, "bandidos do mais alto coturno", como define o autor. Excelente para muita gente incauta, nossa burguesia e Cia, que se ilude com a falácia da imprensa de que os bandidos estão nas cadeias e presídios. Como disse certa vez Graciliano Ramos: "Se eu fosse autoridade, soltava os presos e prendia os bandidos".
S.O.S, sinal geral de perigo
EDUARDO ALMEIDA REIS
eduardo.reis@uai.com.br
Sabe aquele desembargador – um deles... – que apareceu preso pela Polícia Federal nos telejornais? Pois é: jantei com Sua Excelência não faz muito tempo. Festa supimpa: champanhe francês, uísque rótulo preto, garçons a montões. É o que sempre digo, baseado nos fatos e em Guimarães Rosa: viver é muito perigoso. Conviver, mais ainda...
Virgem de maracutais até ontem – o que talvez explique o fato de chegar a uma idade, digamos, provecta, dono de um carro fabricado no século e no milênio passados – ainda me enrolo numa dessas festas e posso ter meus telefones anotados nas agendas de bandidos do mais alto coturno.
É por isso que não gosto de festas; ainda assim, o sentimento é confuso, porque fico p. da vida quando não me convidam. Quando tenho notícia de que, no casamento do filho do fulano, só rolou champanhe vinificado em Reims, ou em Épernay, a frustração é quintuplicada.
A ressalva da vinificação em Reims e Épernay é mais que justificada, depois que a polícia estourou um fundo de garagem, lugar imundo, em Contagem, MG, com 700 garrafas de Veuve Clicquot e mais 400 litros de Johnnie Walker Red Label prontinhos para expedição. A propósito da indústria de Contagem, me contaram do uísque escocês que era fabricado no Barro Preto, bairro de Belo Horizonte, no tempo em que eu ainda não morava por aqui. O patriotismo de certos cavalheiros era tão grande, que viviam repetindo: “Uísque bom é o do Barro Preto".
Muitos deles só compravam uísque quando tinham a certeza de que era produzido no Barro Preto. Certa feita, procurando fazenda para morar, dei com o costado numa propriedade que me interessou. Área, topografia, localização, bela casa colonial em ótimo estado – ali mesmo, na Zona da Mata de Minas, a 10 minutos do colégio das meninas – era tudo que eu andava procurando.
O proprietário queria e não queria vender, porque não precisava de dinheiro. Conversa vai, conversa vem, explicou: “Esta fazenda não me rende, por ano, o que eu ganho por dia na cidade”. Bobo que sou, não me contive: “Ainda que mal pergunte, qual é o seu negócio na cidade?”. Resposta óbvia: “Sou bicheiro, sim, senhor”.
Alguns anos antes, passei por experiência curiosa com um vizinho de fazenda no estado do Rio, sujeito falante, simpático, prestativo, sempre disposto a mandar trazer da Europa qualquer coisa que os amigos pedissem. Foi antes da abertura nas importações, quando tudo era difícil por aqui, com exceção, talvez, do uísque feito no Barro Preto. Resumindo: o novo fazendeiro era simpático demais para ser verdade. Nem tive tempo de explorar sua simpatia esfuziante, porque o rapaz foi preso com estardalhaço: máfia italiana. Máfia mesmo, da legítima, e não dessas mafinhas que andam por aí: dos chineses, dos russos, dos japoneses, das ambulâncias, dos mensalões.
Nosso vizinho mandava e desmandava na Cosa Nostra, original de fábrica, sem essa de pirataria. Mafioso que se preza é simpático, educado, prestativo, ansioso de aceitação e reconhecimento social. É incapaz de matar uma mosca, até porque tem quem o faça melhor do que ele.
Por um átimo, questão de semanas, deixamos de conviver em nossas casas, hoje um jantar aqui, amanhã na fazenda do rapaz que já estava sendo observado pela Polícia Federal, em operação conjunta com a Interpol, o FBI e a polícia italiana. Devo confessar que andei afinzão de conhecer a fazenda do rapaz, pois me contavam que tinha mulher lindíssima, coleção de uísques e licores, pilhas de caixas de charutos cubanos.
Um dos nossos vizinhos, que se adiantou no reconhecimento do terreno, vivia contando maravilhas da cozinha do rapaz. Quando estourou o escândalo, o vizinho passou um tempão sem dormir, depois de esconder no mato, bem escondido, o arsenal que importou por meio do novo amigo.
Nas reuniões sociais, todos se apresentam com seus negócios de fachada, sem a honestidade que se tem o direito de esperar de um desembargador, como aquele que foi preso. Em vez de anunciar sua condição de magistrado, devia dizer: “Sou vendedor de sentenças”.
Bandidagem composta de gente muito burra, que não aprendeu, ainda, que o telefone não foi inventado para cuidar de negócios escusos. O bandido, mesmo quando é da polícia e da Justiça, acha que a parafernália de escuta foi montada para gravar as conversas dos outros. Não é de espantar que tanta gente seja escutada, gravada e presa.
Gosto de gente honesta e franca. Certa feita, notei que bela morena ficou desesperada quando perdeu o ônibus na rodoviária de Cataguases. Cavalheiro prestativo, ofereci-lhe carona no Opalão seis cornetas, amortecedores especiais, despinguelando atrás do ônibus, que parecia ter sido projetado pela Ferrari. Moça bonita, modelo 18, com as pernas ainda sujas do barro da bicicleta que usou para chegar à rodoviária. Conversa vai, conversa vem, contou-me que era natural de BH e trabalhava em Cataguases. Fazendo curvas a 180 km/h, o bobo do piloto do Opalão achou tempo de perguntar pelo emprego de Cataguases. Resposta honesta e franca: “Sou p., sim, senhor”.
Fonte: jornal Estado de Minas - caderno EMCultura - Domingo, 29/7/07