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18 de out. de 2008

Temos, todos, as mãos sujas de sangue

"Somos todos culpados porque temos sido omissos, ou, pior ainda, cegos diante da situação dos miseráveis deste país. "
O texto abaixo do jornalista Aloísio Biondi, falecido em 2000, foi publicado na Folha de São Paulo em 1984, mas poderia ser sido escrito hoje, e até mais real do que no passado, pois nossas mãos continuam cada vez mais sujas de sangue.
Somos todos assassinos
Jornal Folha de S.Paulo , quinta-feira, 22 de novembro de 1984
Não adianta ninguém querer se enganar: temos, todos, as mãos sujas, de sangue. Todos: de cardeais arcebispos a secretários de Estado, de líderes empresariais a líderes sindicais, de jornalistas a empresários “progressistas”, de teóricos intelectuais a líderes feministas, de educadores a economistas.
Somos todos culpados, não adianta sermos hipócritas, negarmos a culpa de tudo sobre os ombros da “ditadura”, do FMI, do “sistema”. Temos, todos, as mãos sujas de sangue, não apenas desses dois meninos friamente fuzilados por feirantes, na periferia de São Paulo – mas do sangue dos pais, mães, filhos assaltados e violentados, nos bairros de classe média ou da periferia, assim como do sangue dos meninos, adolescentes, chefes de família empurrados para a marginalidade e inexoravelmente marcados para um fim trágico.
Somos todos culpados, porque temos sido omissos, ou, pior ainda, cegos diante da situação dos miseráveis deste País. Muitos dirão que a carapuça não lhes serve, que têm brigado, a vida toda, pela solução desses problemas.
Brigado, como? No plano teórico, no nível da atuação política, na senda da atuação intelectual? Pois é exatamente aí que está o centro da questão.
Temos, muitos de nós, tentado “mudar as coisas”, através desse tipo de ação. Mas essa é, até, uma posição confortável, aplacadora de consciências: podemos continuar empenhados em discussões de “alto nível”, presentear nossos filhos com brinquedos eletrônicos ou automóveis, passarmos fins de semana na praia ou em fazendas, exibir camisetas com dizeres em inglês, freqüentarmos bares e restaurantes da moda. Podemos fazer tudo isso, tranquilamente, desculpados pela crença de que só “a longo prazo” haverá mais justiça.
Sabemos que há terror, muito terror, na periferia. Que crianças passam fome, e morrem – ou em “vendetas”, ou vitimadas por balas perdidas, ou queimadas no barracos onde ficaram trancadas porque os pais saíram para trabalhar.
Que jovens saem para trabalhar e não voltam, mortas por estupradores, e que chefes de família morrem nos matagais porque não tinham dinheiro para dar aos assaltantes.
Que populações inteiras, de bairros distantes, se trancam à noite nas casas, numa trágica “esperança” de que seu lar não seja o escolhido para ser atingido pela violência.
Sabemos, mesmo? Não. “Temos notícia” de que isso ocorre, o que é muito diferente.
“Saber” significa incorporar, interiorizar, ter presente. E nós não queremos nada disso. A “vida dos pobres” é para nós é uma informação abstrata, distante. Não queremos imaginar o que seja o dia a dia dessas mães, pais, irmãos – sofrendo por um familiar, seja ele um marginal, ou vítima de um marginal.
Não queremos visualizar o que sejam crianças chorando de fome, ou tiritando em barracos, nas noites frias, enquanto nossos filhos dormem sob grossas cobertas. Não queremos imaginar o drama de doentes, sem assistência – nós, que temos o direito a todos os anestésicos. Não queremos saber. Não queremos, e vamos mais longe: não damos sobras de comida, que irão para o lixo, para crianças esfarrapadas que nos tocam à campainha – “porque podem ser trombadinhas”; não damos roupas velhas às mulheres de crianças ao colo, que aparecem às nossas portas, “porque elas poderiam trabalhar”; não damos esmolas aos velhos, bêbados deficientes mentais que perambulam pelas ruas “porque o problema é do Estado”.
Não adianta ninguém querer se enganar: somos todos culpados pela escalada de violência que a todos assusta (egoisticamente).
É certo que o País tem problemas sociais imensos, acumulados. Como é certo que a recessão e o desemprego os agravaram. Mas o que fizemos, no dia a dia, no plano concreto, para minorá-los? Vivemos com a boca cheia de frases tipo “a recessão é um mal terrível, em países como Brasil, porque aqui não existe o seguro, para o desempregado, como nos países ricos”. Frase bonita. Aplacadora de consciência. Não é apenas o “seguro-desemprego” que minora os problemas sociais nos países ricos.
Não. O que os abranda, é algo mais forte, mais decisivo: a SOLIDARIEDADE, essa característica banida da sociedade brasileira – até deliberadamente, por radicalismo político, nos últimos anos.
Nos EUA, a recessão fez mais de dez milhões de desempregados, trabalhadores de todos os níveis de renda. Havia o seguro-desemprego. E, no entanto, milhares de famílias de classe média se reuniam em grupos e forneciam “sopas” a desempregados (devidamente cadastrados), em cozinhas improvisadas em garagens de residências. Não eram iniciativas de organizações religiosas, tipo Exército da Salvação – deixe-se claro – mas iniciativas de grupos de famílias. Era solidariedade. E aqui? Só o palavrório vazio, as criticas ao FMI e adjacências.
A violência que vem atingindo a todos nós tem origem na omissão de todos nós.
Há omissão da Igreja, que se empenha em “conscientizar politicamente” e rejeita a possibilidade de usar sua influência para mobilizar a classe média e rica, em favor dos desesperados – e chega mesmo, num radicalismo incompreensível, a combater esse tipo de iniciativa (basta lembrar, num exemplo clássico, a atitude do padre paulista que recusou a ajuda material a desempregados, obtida através de conhecida apresentadora de TV).
Há omissão dos governos de Estado e de Municípios, que falaram em “participação”, ação comunitária, em suas campanhas eleitorais – e nada fizeram para estimular a organização da população diante da crise, para incentivar o trabalho voluntário, para minorar os efeitos da crise (ao contrário: as chamadas “secretarias de participação” foram reduzidas a dimensões minúsculas, pelas secretarias de Planejamento).
Há omissão de lideranças sindicais – que, também por radicalismo, afirmam que minorar a miséria é uma medida “assistencialista”, e “contra o avanço do movimento sindicalista” (um dos mais famosos líderes sindicais do País, escreveu, nesta Folha, ser ótimo que o governo de Estado não tivesse criado “frentes de trabalho”, para minorar o desemprego porque isso “desmobilizaria as massas”. Para ele, “é bom” que haja desempregados; para ele, os miseráveis, seus filhos, irmãos, mães, são apenas “massa de manobra”).
Há omissão de todos, sim: dos economistas, dos jornalistas, dos empresários progressistas, das feministas – todos muito cientes de suas “posições políticas”, que os “impede” de ter solidariedade, no dia a dia.
É preciso mudar.
Que Igreja, governos de Estado, Prefeituras, Associações de Moradores de Bairros, entidades empresariais e classistas tomem assento ao redor de uma mesa, e estabeleçam planos simples para reduzir a miséria – e, por extensão, a violência. Através da solidariedade, do trabalho voluntário, da mobilização da sociedade – além da pressão sobre os governos de Estado e seus secretários intelectualizados.
A muitos, a proposta parecerá “pequeno burguesa”. Não há nada mais “pequeno burguês”, no entanto, do que a recusa em abandonar o discurso “politizado”, e redescobrir a realidade.
Enquanto essa mudança não ocorrer, teremos, todos, as mãos sujas de sangue. Nossos pais, irmãos, filhos continuarão a morrer. Por nossa culpa.
Texto publicado no site Aloísio Biondi

2 comentários:

  1. Anônimo19/10/08

    Artigo tocante. Pensar...

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  2. Anônimo20/10/08

    Realmente, você havia mencionado no começo: é como os dias atuais... Nada evoluiu, só, em grande parte, a miséria dessa gente.

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