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17 de ago. de 2008

Texto para domingo

Eternos pecadores
Aos nobres pecadores...
Déa Januzzi
Ele é um eterno, mas nobre pecador, pois se considera ateu e diz que Deus anda meio distraído ultimamente. Carlos Ferrer, o Baiano, das camisetas que são bandeiras, que saíram de debaixo da roupa para ganhar lugar de destaque no peito aberto dos jovens, é um eterno pecador.
Sempre achei Gandhi um nobre pecador, por pregar a paz num mundo tão violento, se vestir de branco, jejuar em nome da justiça entre os homens. Martin Luther King é um velho pecador, que falou em negritude num planeta branco. Janis Joplin, com seus cabelos revoltos, óculos redondos e uma voz que consegue tocar as estrelas, é uma pecadora e tanto. Não agüentou viver entre nós, pois seu pecado maior foi não aceitar a fama, saber que ela não leva a lugar nenhum.
Por mais que destratem, transfigurem, joguem pedra na imagem de Che Guevara, ele é um nobre pecador, desses que não perdem nunca a ternura, mesmo quando têm que ser duros em suas escolhas.
A voz da cantora de blues, Billie Holiday é um verdadeiro pecado nos faz ajoelhar ao ouvi-la. Ela comeu o pão que o diabo amassou com os pés, por ter cometido o pecado de nascer negra e pobre. Não se perdoou por ter cometido o pecado do sucesso, de enfeitiçar as pessoas com sua voz poderosa e nostálgica.
Marilyn Monroe também foi pecadora. O único e insano pecado que cometeu foi ter nascido bela. Quando ela surgia, com as saias ao vento, os homens pecavam só de olhar. Marilyn nunca foi feliz, mas é uma bela pecadora, que não se enquadra em nenhuma igreja.
Não precisa ir tão longe assim, para encontrar pecadores dos bons: Mary Fiqueiredo Arantes comete a loucura de fazer poesia em forma de bijuterias. Seu irmão, Aluízio Figueiredo, é outro pecador que torce e retorce o ferro, para transformar tudo em arte.
Conheço pecadores confessos que transgridem as leis da normalidade, da mesmice, do anteontem das coisas, como o escritor Roberto Drummond, que sempre pecou em nome da escrita, que derrubou conceitos e criou uma literatura pop.
Simone de Beauvoir continua sendo a minha pecadora preferida por falar em Segundo sexo, quando as mulheres ainda tremiam de medo. Ela cometeu a injúria de falar sobre a velhice e comparar os asilos a morredouros. Ao meu redor, vejo pecadoras irrecuperáveis, como Janaína, que comete a loucura de divulgar a cultura cigana. Na minha lista de pecadores declarados tenho que incluir Ethel, que não desiste de seus sonhos. Magui é pecadora por natureza. Com suas saias rodadas, ela tem pacto com o Sol, com a Lua, a terra, com a chuva e o vento. Ela sabe o milagre do pão e das ervas, do fogão de lenha que transforma alimentos em dádivas, que são pura magia.
Gislaine D’Assumpção é pecadora nata, pois fala em expansão da consciência, em ecovilas, em projetos holísticos, quando todo mundo se tranca dentro de si mesmo. Ela anuncia o paraíso na terra e tem jeito de sacerdotisa, mas não tem medo de pecar. Às pecadoras anônimas que às vezes são santas, mas também sabem que a vida tem seus estranhos caminhos. A todas as mulheres que insistem em amar, em acreditar na poesia entre um homem e uma mulher, apesar de estarem sempre sós. Aos homens que cometem o pecado de entender as mulheres. Aos pais que pecam pela ausência, pelo distanciamento, que negam os filhos inumeráveis vezes. Às mães pecadoras que conseguem expulsar, com muito custo, os filhos do paraíso.
A tantas mães rejeitadas, que cometem o pecado de amar demais. Pelos textos profanos, picantes de Branca Maria de Paula, que faz literatura erótica. Pelos pecados das mulheres que continuam morrendo nas fogueiras imensas da sabedoria, confesso: entre a lucidez e a loucura, prefiro a última, que tem mais de delírio. Aos que não têm medo de pecar nem prometem o que não podem cumprir. Aos que não têm medo de errar, mas muitas vezes acertam. Pelos pecados maiores, que chegam à nobreza, à elegância e que revelam toda a fragilidade de ser e de estar no mundo.
Fonte: jornal Estado de Minas - 17/8/08 - Caderno Bem Viver (só abre para assinante)

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